sábado, 12 de abril de 2014

Acesso à Justiça (Artigo)

“O mundo é para quem nasce para conquistar,e não para quem sonha que pode conquistá-lo,ainda que tenha razão.” (Fernando Pessoa)

Sumário: 1. Apresentação; 2. Introdução; 3. Acesso à Justiça; 4. Empecilhos ao Acesso à Justiça; 4.1 Empecilhos Econômicos; 4.2 Empecilhos Sócio-culturais; 4.3 Empecilhos Psicológicos; 4.4 Empecilhos Jurídicos e Judiciários; 5. Soluções para Efetivação do Acesso à Justiça; 5.1 As três “ondas” de Acesso à Justiça; 6. Conclusões.

1. Apresentação
Este breve trabalho monográfico foi realizado para ser entregue como forma de avaliação da disciplina Direito Processual Constitucional, ministrada pelo professor Wellington Cabral Saraiva, no Curso de Especialização latu sensu em Direito Processual Civil pela Universidade Federal de Pernambuco.
Foi escolhido este tema (embora consagrado e aceito em nosso sistema jurídico), por ainda apresentar dificuldades jurídicas, econômicas e psicológicas no que tange a sua fiel aplicabilidade prática nos dias de hoje.
O princípio garantidor do acesso à justiça está consagrado na Constituição de 1988, artigo 5º, XXXV, enquadrado dentro dos Direitos e Garantias Fundamentais, mais especificamente nos Direitos Individuais e Coletivos.
Este estudo tem como objetivo abordar a problemática do acesso à justiça, as dificuldades para fazer valer este direito e as possíveis soluções.
2. Introdução
“Toda pessoa tem direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer natureza” (Artigo 8º, 1 da Convenção Interamericana sobre Direitos Humanos - São José da Costa Rica).
O acesso à justiça está previsto no artigo 5º, XXXV da Constituição Federal que diz: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de direito.” Pode ser chamado também de princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional ou princípio do direito de ação.
Interpretando-se a letra da lei, isto significa que todos têm acesso à justiça para postular tutela jurisdicional preventiva ou reparatória relativa a um direito.[1] Verifica-se que o princípio contempla não só direitos individuais como também os difusos e coletivos e que a Constituição achou por bem tutelar não só a lesão a direito como também a ameaça de lesão, englobando aí a tutela preventiva.
Pode-se confundir o princípio do acesso à justiça com o dirieto de petição consagrado no mesmo artigo, inciso XXIV, alínea “a” da Constituição. Mas o que diferencia um princípio do outro é que no princípio garantidor do acesso a justiça é a necessidade de se vir a juízo pleitear a tutela jurisdicional, haja visto se tratar de direito pessoal, ou seja, é preciso que se tenha interesse processual, preenchendo assim a condição da ação.
Por outro lado, para o direito de petição não é necessário que o peticionário tenha sofrido gravame pessoal ou lesão em seu direito, porque se caracteriza como direito de participação política, onde figura o interesse geral no cumprimento da ordem jurídica.
Não se configuram ofensa ao princípio do acesso à justiça os casos de extinção do processo sem julgamento de mérito, caso não estejam presentes as condições da ação.
Deste princípio decorre ainda outro consagrado no inciso LXXIV, do mesmo artigo da Constituição, que garante a assistência jurídica gratuita e integral aos necessitados. Observe-se que o termo assistência judiciária da Constituição anterior foi substituído pelo termo assistência jurídica, que é gênero daquela espécie por ser mais amplo e abranger a consultoria e atividade jurídica extrajudicial.
A garantia do acesso à justiça não significa dizer que o processo deva ser gratuito.
Dentro de uma visão axiológica de justiça, o acesso a ela não fica reduzido o acesso ao judiciário e suas instituições, mas sim a uma ordem de valores e direitos fundamentais para o ser humano, não restritos ao sistema jurídico processual.
Kazuo Watanabe, que aborda o tema com muita propriedade: “A problemática do acesso à Justiça não pode ser estudada nos acanhados limites dos órgãos judiciais já existentes. Não se trata apenas de possibilitar o acesso à Justiça enquanto instituição estatal, e sim de viabilizar o acesso à ordem jurídica justa.”[2]
Em sendo a garantia de acesso efetivo à máquina jurídica e judiciária talvez um dos maiores mecanismos de luta para a realização da ordem jurídica justa, e assim, efetivar o exercício da cidadania plena.
De outra maneira, vendo de uma ótica mais ampla, o acesso à justiça deve também ser visto como movimento transformador, e uma nova forma de conceber o jurídico, enxergando-o a partir de uma perspectiva cidadã. Tendo a justiça social como premissa básica para o acesso à justiça.
3. Acesso à Justiça
O acesso à justiça é direito humano e essencial ao completo exercício da cidadania. Mais que acesso ao judiciário, alcança também o acesso a aconselhamento, consultoria, enfim, justiça social.
O disposto no artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal é muito mais abrangente que o acesso ao Poder Judiciário e suas instituições por lesão a direito. Vai além, enquadrando-se aí também a ameaça de direito, e segue-se com uma enorme gama de valores e direitos fundamentais do ser humano.
Assim, quem busca a defesa de seus direitos (ameaça ou lesão) espera que o Estado-juiz dite o direito para aquela situação, em substituição da força de cada litigante, pacificando os conflitos e facilitando a convivência social.
Cândido Rangel Dinamarco comenta o escopo social da jurisdição:
“Saindo da extrema abstração consiste em afirmar que ela visa a realização da justiça em cada caso e, mediante a prática reiterada, a implantação do clima social de justiça, chega o momento de com mais precisão indicar os resultados que mediante o exercício da jurisdição, o Estado se propõe a produzir na vida da sociedade.
Sob esse aspecto, a função jurisdicional e legislativa estão ligadas pela unidade de escopo fundamental de ambos: a paz social.
Mesmo quem postule a distinção funcional muito nítida e marcada entre os dois planos de ordenamento jurídico (teoria dualista) há de aceitar que direito e processo compõem um só sistema voltado à pacificação de conflitos”[3]
A tutela jurisdicional é exercida através da garantia de acesso à justiça e se constitui um dos maiores, senão o maior instrumento para garantir uma ordem jurídica justa e então efetivar o exercício da cidadania plena.
O acesso à justiça está intimamente ligado à justiça social. Pode-se até afirma que é a ponte entre o processo e a justiça social.
Nos séculos XVIII e XIX só formalmente as pessoas tinham acesso à justiça, podiam propor ou contestar ação. A justiça, na prática, só era obtida por quem tivesse dinheiro para arcar com as despesas de um processo.
No começo deste século, com o crescimento do capitalismo, começam as reivindicações e as preocupações de índole social, quando a garantia do acesso à justiça passa a ter mais relevo.
Hoje em dia, está mais perto de coincidir a garantia do acesso à justiça formal e prático. Mas é ilusório afirmar que isto já acontece em nosso país nos dias de hoje. Sabe-se que existem inúmeros obstáculos que uma sociedade tem que transpor para que se chegue à justiça. E estes obstáculos se apresentam de forma ainda mais intensa quando se trata das classes menos favorecidas.
Falar em acesso à ordem jurídica justa é também falar em justiça eficaz, que é um dos maiores problemas dos sistemas jurídicos de hoje. A terminologia JUSTIÇA está diretamente ligada a não só “dar a cada um o que é seu” mas sim em “dar a cada um o que é seu conforme a vontade da lei e em seu devido tempo.”
4. Empecilhos ao acesso à Justiça
Apesar dos inúmeros avanços já conquistados na consolidação de um integral acesso à justiça, instrumento essencial à efetivação dos direitos componentes da cidadania plena, muitos empecilhos ainda existem à completa efetividade deste direito social básico. Esta efetividade somente se daria num contexto em que as partes possuíssem “completa ‘igualdade de armas’ – a garantia de que a conclusão final dependa apenas dos méritos jurídicos relativos das partes antagônicas, sem relação com diferenças que sejam estranhas ao Direito e que, no entanto, afetam a afirmação e reivindicação dos direitos”.[4] Evidentemente que tal “paridade de armas” tem caráter utópico, razão pela qual devemos buscar meios, cada vez mais radicais, para alcançá-la.
Passando prioritariamente pela esfera sócio-econômica, tais limitações também possuem aspectos culturais, psicológicos e, na esfera do Direito, jurídicas e procedimentais.
4.1 Empecilhos Econômicos
O elevado valor do processo é um dos principais empecilhos para um firme acesso à justiça. Sendo o Brasil dotado de uma péssima distribuição de renda, podemos concluir o quão limitador é o acesso à justiça, e por que não dizer, à cidadania como um todo, devido a desigualdade econômica.
Os procedimentos judiciais necessários à solução de uma lide, na maioria do países, possui custos normalmente elevados e devem ser necessariamente pagos pelos autores, incluindo os honorários advocatícios e algumas custas judiciais. Consiste na mais importante despesa individual, os honorários advocatícios, que representam a esmagadora proporção dos altos custos do litígio, pois os advogados e seus serviços são muito caros.
No Sistema Americano, o vencido não é obrigado a responder pelos honorários do advogado da parte vencedora. Nos países que adotam o princípio do sucumbência – a menos que o litigante em potencial esteja certo de vencer -, a penalidade é duas vezes maior e pode inibir o litigante em potencial de ingressar em juízo, já que, se vencido, além de arcar com os honorários do seu advogado, terá que pagar os honorários da parte contrária.[5]
Não se pode esquecer também que, ao autor, cabe o pagamento das custas de distribuição, as provas que desejar produzir (perícias, diligências, etc.), e ainda o preparo de recursos, ficando distantes, em virtude de seu preço, da parte menos favorecida economicamente.
Em pesquisa realizada pelo Projeto de Florença, coordenado por Mauro Cappelletti, foi constatado que em determinados países, o custo do litígio aumenta na medida em que baixa o valor da causa, chegando ao absurdo de, na Alemanha, pela justiça comum, uma pequena causa de valor não superior a US$ 100, mesmo que somente utilizada a primeira instância, custa US$ 150, enquanto uma ação de US$ 5.000, em duas instâncias, teria o custo de US$ 4.200.[6]
A equação, perversa, tem destinatário certo: os indivíduos menos favorecidos, ou seja o trabalhador, o consumidor, o morador dos conjuntos habitacionais e das favelas, enfim, exatamente aqueles que, por sua condição social, mais fragilizados se encontram, mais vulneráveis estão ao domínio de grupos econômicos e dos poderosos, e mais dependentes, portanto, de uma expedita atuação do Estado para resguardar os seus interesses, tão desprezados.
A duração dos processos é também um fator que limita o acesso à justiça. Em muitos países as causas levam em média três anos para se tornarem exeqüíveis. Essa delonga eleva consideravelmente as despesas das partes, pressionando os economicamente mais fracos a abandonarem sua causas, ou aceitarem acordos por valores muito inferiores aqueles a que teriam direito. Em razão disto a Convenção Européia para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais, em seu art. 6º, parágrafo 1º , reconhece “que a Justiça que não cumpre suas funções dentro de ‘um prazo razoável’ é, para muitas pessoas, uma Justiça inacessível.”[7]
O processo é um instrumento indispensável não somente para a efetiva e concreta atuação do direito de ação, mas também para a remoção das situações que impedem o pleno desenvolvimento da pessoa humana e a participação de todos os trabalhadores na organização política, econômica e social do país,[8] portanto, sua morosidade estrangula os direitos fundamentais do cidadão.
A morosidade do processo está ligada à estrutura do Poder Judiciário e ao sistema de tutela dos direitos. Para que o Poder Judiciário tenha um bom funcionamento, necessário se faz, dentre outros, que o número de processos seja compatível com o número de juizes que irão apreciá-los, porém, é sabido que não é isso que ocorre. A imensa quantidade de processos acumulados por um juiz prejudica não só a celeridade da prestação da tutela jurisdicional, como também a sua qualidade.[9]
Muitas demandas não seriam levadas ao Poder Judiciário se o réu não tivesse do seu lado a lentidão da tutela jurisdicional, certamente a celeridade evitaria a propositura de muitas ações.
A morosidade gera descrença na justiça, a partir do momento em que o cidadão toma conhecimento da sua lentidão, das angústia e dos sofrimentos psicológicos trazidos por ela. No entanto, a Convenção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais, em seu art. 6º, parágrafo 1º, garante que toda pessoa tem o direito a uma audiência eqüitativa e pública, dentro de um prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial. Ainda, a Constituição Federal Brasileira, em seu art. 5º, § 2º, afirma que “toda pessoa tem direito de ser ouvida com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável...”
4.2 Empecilhos Sócio–culturais
As limitações causadas em razão do estrato social a que pertence o cidadão, apesar da decorrência lógica da desigualdade econômica, possuem também aspectos sociais, educacionais e culturais.
A grande parte dos cidadãos não conhece e não tem condições de conhecer os seus direitos. Quanto menor o poder aquisitivo do cidadão, menor o seu conhecimento acerca de seus direitos e menor a sua capacidade de identificar um direito violado e passível de reparação judicial; além disto é menos provável que conheça um advogado ou saiba como encontrar um serviço de assistência judiciária. São barreiras pessoais que necessitam ser superadas para garantir o acesso à justiça.
A complexidade das sociedades faz com que mesmo as pessoas dotadas de mais recursos tenham dificuldade para compreender as normas jurídicas.[10]
Para Horácio Wanderley Rodrigues, são três os pontos principais de estrangulamento, neste aspecto, ao acesso presentes no Brasil. Em primeiro lugar a falência da educação nacional, o descompromissso dos “meios de comunicação” com a informação, e por fim, a quase inexistência de instituições oficiais encarregadas de prestar assistência jurídica prévia ou extraprocessual, que atuariam informando e educando a população sempre que surgissem dúvidas jurídicas sobre situações concretas.[11]
Saliente-se que quanto mais pobre é o cidadão, mais difícil é o seu contato com um advogado, não só porque em seu círculo de relações não existem profissionais desta área, mas também porque, ele reside, quase sempre, muito distante dos bairros onde funcionam os escritórios de advocacia e os tribunais.
Finalmente, quando os pobres conseguem algum acesso à justiça, correm o risco de tê-la muito precária, como exemplo, temos a assistência judiciária que tem seus serviços, muitas vezes, deficientemente prestados.
Ainda, outro ponto importante diz respeito à disparidade que surge quando um litigante habitual defronta-se com um litigante eventual. Esta distinção se verifica entre indivíduos que freqüentemente estão em juízo com aquele que nunca, ou poucas vezes, sentou-se perante um juiz. Segundo o professor Galanter, as vantagens dos habituais são inúmeras: “1) a maior experiência com o direito possibilita-lhes melhor planejamento do litígio; 2) o litigante habitual tem economia de escala, porque tem mais causas; 3) o litigante habitual tem oportunidades de desenvolver relações informais com os membros da administração da justiça; 4) ele pode diluir os riscos da demanda por maior número de casos; e 5) pode testar estratégias com determinados casos, de modo a garantir expectativa mais favorável em relação a casos futuros”.[12]
Pode-se concluir que dá menos problemas mobilizar as empresas no sentido de tirarem vantagens de seus direitos, o que, se dá exatamente contra aquelas pessoas comuns que são mais relutantes em buscar o amparo do sistema judicial, em face das dificuldades que encontrarão.
4.3 Empecilhos Psicológicos
O aspecto psicológico deve necessariamente ser considerado. As pessoas menos favorecidas economicamente de alguma forma temem os advogados, os juizes e os promotores. Os juizes são vistos como seres superiores e, os advogados como ‘pessoas em que se deve confiar desconfiando’.
A maioria das pessoas tem receio de estar em juízo, seja por decepção com o resultado de alguma ação em que estivesse envolvida ou tivesse interesse, ou por temerem represálias ao recorrerem à justiça, ou ainda, represálias da própria parte adversária.
Para o brasileiro, o Poder Judiciário, é inacessível, não é confiável e não faz justiça.
4.4 Empecilhos Jurídicos e Judiciários
Estruturados de acordo como preceitos individualistas decorrentes do liberalismo burguês consolidado nos séculos XVIII e XIX, os ordenamentos jurídicos ocidentais, apesar de grandes avanços já conquistados, ainda mantém limitações no que concerne à legitimação para agir, principalmente na esfera dos direitos coletivos, difusos e individuais homogêneos, direitos supra-individuais só passíveis de efetiva aplicabilidade com a maior amplitude possível de titulares para sua tutela.
A inacessibilidade a alguns instrumentos processuais, bem como a procrastinação dos feitos em razão de brechas da legislação processual, constituem também entraves à consolidação de uma ordem jurídica justa.
A crise econômica e de legitimidade enfrentada pelo Poder Judiciário, consubstanciada em constante denúncias de corrupção e nepotismo, na carência de recursos materiais e humanos, a centralização geográfica de suas instalações, dificultando o acesso de quem mora nas periferias, a inexistência de instrumentos de controle externo por parte da sociedade, tem contribuído para o aumento das restrições de grande parcela da sociedade à acessibilidade.
Por fim, dentro das restrições de caráter eminentemente judiciário, há que se destacar a polêmica acerca da limitação da capacidade postulatória, que tantos debates vem gerando entre os operadores jurídicos. A exigência da presença de advogado em todo e qualquer processo (já relativizada pelo Poder Judiciário) tem sido vista por um lado como elemento castrador da efetividade ao acesso e por outro como garantia a ele, ou seja, como instrumento de limitação ou elemento fundamental ao exercício pleno da cidadania.
5. Soluções para efetivação do acesso à Justiça
5.1 As três “ondas” de acesso à Justiça.[13]
O recente despertar de interesse em torno do acesso à justiça levou a três posições básicas. Deu início a partir dos anos setenta, podendo afirmar que as soluções para o acesso são: - primeira onda -, hipossuficientes econômicos, - segunda onda -, interesses transindividuais e, - terceira onda –, novas fórmulas de instrumentos.
Num primeiro momento, denominado de primeira onda, os esforços “concentraram-se, muito adequadamente, em proporcionar aos pobres”.[14] Tais reformas se realizaram adotando dois sistemas básicos de atuação: através do sistema Judicare e de advogados remunerados pelos cofres públicos. Alguns países, mais recentemente, adotaram os dois modelos combinados.
O sistema Judicare é caracterizado por Mauro Cappelletti como “um sistema através do qual a assistência judiciária é estabelecida como um direito para todas as pessoas que se enquadrem nos termos da lei. Os advogados particulares, então, são pagos pelo Estado. A finalidade do Judicare é proporcionar aos litigantes de baixa renda a mesma representação que teriam se pudessem pagar um advogado”.[15] Áustria, Inglaterra, Holanda, França e Alemanha foram os principais países a adotar este sistema.
O sistema de assistência judiciária, com advogados remunerados pelos cofres públicos, foi implantado em primeiro lugar nos Estados Unidos da América (Legal Services Corporation), e se caracteriza por prestar a assistência não só judiciária, mas também jurídica, prévia e informativa, aos pobres, realizando “grandes esforços no sentido de fazer as pessoas pobres conscientes de seus novos direitos e desejosas de utilizar advogados para obtê-los”.[16]
Suécia e a província canadense de Quebec, verificando a insuficiência de cada um dos modelos básicos em separado, forma os primeiros ordenamentos jurídicos a adotar um sistema misto, combinando o Judicare com advogados servidores públicos, isto é, dando dupla opção aos necessitados para constituir um profissional jurídico na defesa de seus interesses. A elas seguiram-se a Austrália, a Holanda e a Grã-Bretanha.
Após a reformulação dos serviços de assistência judiciária, o ‘movimento acesso à justiça’ enfrenta um outro obstáculo, agora de caráter organizacional. A segunda onda vem buscando solucionar a representação dos interesses coletivos, difusos e individuais homogêneos, direitos novíssimos e que restavam já mortos por ausência de aparato procedimental que os fizesse valer.
Num primeiro momento atribui-se ao Ministério Público a tutela destes direitos, mas sendo o parquet representante natural em juízo dos interesses públicos tradicionais – por exemplo, do interesse do estado em perseguir a criminalidade, esta solução não prosperou, já que tais direitos, apesar de eminentemente públicos, possuem tamanho grau de novidade, especialização e técnica que na maioria das vezes inviabiliza a ação daquele órgão estatal.
Daí o surgimento de agências públicas especializadas, como por exemplo a Environmental Proctetion Agency (EDA nos Estados Unidos e o Ombudsman público dos consumidores na Suécia). Além destas instituições, as legislações passaram a ampliar a possibilidade de participação no polo ativo das ações para defesa destes direitos. Foram gradualmente admitidas inúmeras organizações não-estatais (associações, sindicatos, partidos políticos, etc.) como legitimadas para tutela de direitos coletivos e difusos, além da criação de novas ações, como por exemplo as class action ou ações coletivas nos EUA.
Mas o ‘movimento’ não parou por aí. Uma terceira onda se formou e ainda não se esgotou, buscando a superação do chamado “obstáculo processual”. Diante da constatação de que somente os mecanismos já citados eram ainda insuficientes ao efetivo acesso à justiça, já que “ a solução processual – o processo ordinário contencioso – mesmo quando são superados os problemas de patrocínio e de organização dos interesses, pode não ser a solução mais eficaz, nem no plano de interesses das partes, nem naquele dos interesses mais gerais da sociedade”, busca o ‘movimento de acesso à justiça‘ novas alternativas para resolução de conflitos que não restritas ao ordenamento processual, normalmente exasperador de paixões e conflitos. Algumas destas alternativas, contempladas no plano do pluralismo jurídico, já estão sendo aceitas como instrumental procedimental competente para dirimir litigiosidades, como, por exemplo, a mediação, a conciliação informal e a arbitragem, entre outros.
Entre nós, a questão do acesso à justiça somente toma contornos transformadores, após o final da ditadura militar, nos primórdios dos anos oitenta e, em razão disto, as três ondas ocorrem concomitantemente. Dos muitos e bons frutos já produzidos nestes poucos anos, podemos citar, de forma geral, a Ação Civil Pública, instituída pela Lei nº 7.347, de 24 de julho de 1985, que disciplina a tutela do meio ambiente, aos direitos do consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico e turístico e qualquer outro interesse difuso ou coletivo, o Estatuto da Criança e do Adolescente ( Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990), o Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990), a Lei Complementar nº 76, de 06 de julho de 1993, que estabelece o processo de desapropriação de imóvel rural, por interesse social, para fins de reforma agrária, em 12 de janeiro de 1994, a Lei Complementar nº 80, que organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para organização das defensorias dos estados-membros e os Juizados Especiais Cíveis e Criminais (Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995).
A Constituição Federal de 05 de outubro de 1988 foi, sem sombra de dúvidas, o mais proficiente instrumento legal pátrio de ampliação da cidadania e das garantias de efetivo acesso à justiça: o art. 5º, inciso LXXIV, dispõe: “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”; prevê em seu art. 134 a criação da Defensoria Pública: “instituição essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a orientação jurídica e a defesa, em todos os graus, dos necessitados, na forma do art. 5º, LXXIV”.
6. Conclusões
Os estudiosos e, por que não dizer, os militantes do ‘movimento de acesso à justiça’, que apesar de não estarem ligados por nenhuma organização ou entidade comum, estão equalizados, como diz Cappelletti, na busca de “construir um sistema jurídico e procedimental mais humano”, continuam estudando, pesquisando e propondo novos instrumentos de acessibilidade da justiça.
Para Mauro Cappelletti e Bryant Garth, existe ainda a necessidade de reformar os procedimentos em geral, a fim de garantir maior simplificação dos feitos, com a aplicação dos princípios da oralidade, da livre apreciação das provas, da concentração dos procedimento e o contato imediato entre juizes, partes e testemunhas. Necessário também imaginar métodos alternativos para decidir as causas judiciais, como o juízo arbitral, a conciliação e incentivos econômicos para que ela ocorra, tribunais de ’vizinhança’ ou ‘sociais’ para solucionar divergências na comunidade, tribunais especiais para demandas de consumidores, entre muitos outros.
As conquistas contabilizadas pelo movimento de acesso à justiça, na construção de uma ordem social justa e cidadã, não podem ser, de forma alguma, menosprezadas. Entretanto, face à dinâmica do processo social, novos direitos surgem a todo instante, além do que muitos daqueles proclamados pela modernidade ainda estão sem efetivação. Somente a normatização de procedimentos, a criação de espaços ‘alternativos’ para a resolução de conflitos, o incremento de escritórios de assessoria jurídica popular, entre tantas outras conquistas, não superam, apesar de minorá-las, as abissais limitações econômicas, culturais e psicológicas a que está subjugada a grande maioria da população.
A luta pelo efetivo acesso aos direitos Humanos extrapola, e muito, o âmbito do jurídico. Somente uma ação conjunta e progressiva, pautada pela pluralidade e pela dialética, poderá enfrentar, e quem sabe vencer, os desafios cada vez maiores e mais complexos que se colocam ao exercício da cidadania na ‘pós-modernidade’.

Bibliografia:
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Notas:
[1] Nery Júnior, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal, 5ª edição, p. 94
[2] Kazuo Watanabe, Acesso à Justiça e sociedade Moderna, in Participação e processo, São Paulo, Ed. RT, 1988.
[3] Dinamarco, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo, 1987, p. 220-221
[4] Cappelletti, Mauro & Garth, Bryant. op. cit, p. 15
[5] Cappelletti, Mauro & Garth, Bryant. idem, p. 17.
[6] Cappelletti, Mauro & Garth, Bryant. op. cit., p. 19.
[7] Idem, Ibidem, p. 21.
[8] Capri, Federico, La provviosoria esecutorietà della sentenza, Milano, Giuffrè, 1979, p. 11, apud Marinoni, Luiz Guilherme, Novas Linhas do Processo Civil, 1999, p. 33
[9] Armelim, Donald. Acesso à Justiça, Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo, vol. 31, p. 173, apud Marinoni, Luiz Gulhermei, Novas linhas do Processo Civil, 1999, p. 34.
[10] Cappelletti, Mauro & Garth, Bryant, Acesso à Justiça, 1988, p. 23.
[11] Rodrigues, Horácio Wanderley. Acesso à justiça no direito processual brasileiro, 1994.
[12] Cappelletti, Mauro & Garth, Bryant. op. cit., p. 25.
[13] Cappelletti, Mauro & Garth, Bryant. op. cit., 1988.
[14] Idem, p. 31.
[15] Idem, p. 35.
[16] Idem, p. 42.
 

Informações Sobre o Autor

Ana Flavia Melo Torres
Advogada em Pernambuco

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