1. Jurisdição e seus escopos no Estado Contemporâneo:
À medida que as sociedades evoluíram e
se tornaram complexas, passou a existir a necessidade de regramentos do
exercício de poder, ou seja, foi necessário institucionalizar o poder e
as formas de acesso a ele.
Desta necessidade surgiu o Estado e com
ele regras sociais, que também passaram a ser institucionalizadas, dando
origem à legislação estatal. Ao lado de tais normas de controle viu-se a
necessidade, para evitar a ocorrência de conflitos, da criação de
normas que definissem as formas pelas quais tais conflitos e
insatisfações seriam resolvidos, bem como quem os resolveria. Dando
origem ao direito processual e a jurisdição. (HORACIO, 1994, 22)
Logo, a manifestação do Judiciário, no
exercício da função jurisdicional, é a manifestação do próprio Estado,
que legisla para fixar normas que permitam a existência e
desenvolvimento da sociedade. Este é o escopo jurídico, contudo, é
necessário que a aplicação deste direito se dê de tal forma que consiga
pacificar a sociedade com justiça.
A decisão judicial necessita ser justa e
útil, sendo necessário também que possua legitimidade, pois preenchendo
tal requisito, será um instrumento de educação da coletividade, para
seus direitos e obrigações, cumprindo assim seu escopo social. E por fim
ao decidir e impor sua decisão o Estado esta afirmando sua autoridade,
bem como a existência de uma instância última para quais os indivíduos
possam recorrer, correspondendo, portanto, ao escopo político da
jurisdição.
2. Evolução do conceito de Acesso à Justiça:
Para Mauro Cappelletti, o conceito de
acesso à justiça tem sofrido uma transformação importante,
correspondente a uma mudança equivalente no estudo e ensino do processo
civil. Destaca que, nos estados liberais burgueses dos séculos XVIII e
XIX, os procedimentos adotados para solução dos litígios civis refletiam
a concepção individualista dos direitos então vigentes. Direito ao
acesso à proteção judicial significava essencialmente o direito formal
do indivíduo agravado de propor ou contestar uma ação. (CAPPELLETTI,
1988, 09)
A teoria era a de que, embora o acesso à
justiça pudesse ser um "direito natural", tais direitos não
necessitavam de uma ação do Estado para sua proteção. Esses direitos
eram considerados anteriores ao Estado, sua preservação exigia apenas
que o Estado não permitisse que eles fossem infringidos por outros. O
Estado, portanto, permanecia passivo, com relação a problemas, tais como
a aptidão de uma pessoa para reconhecer seus direitos e defendê-los
adequadamente, na prática.
À medida que as sociedades do laissez-faire
cresceram em tamanho e complexidade, o conceito de direitos humanos
começou a sofrer uma transformação radical. A partir do momento em que
as ações e relacionamentos assumiram, cada vez mais, caráter coletivo
que individual, as sociedades modernas necessariamente deixaram para
trás a visão individualista dos direitos, refletida nas declarações de
direitos, típicas dos séculos XVIII e XIX. (CAPPELLETTI, 1988, 10)
O movimento fez-se no sentido de
reconhecer os direitos e deveres sociais dos governos, comunidades,
associações e indivíduos. Esses novos direitos humanos, exemplificados
pelo preâmbulo da Constituição Francesa de 1946, são, antes de tudo, os
necessários para tornar efetivos, quer dizer, realmente acessíveis a
todos, os direitos antes proclamados. Entre esses direitos garantidos
nas modernas constituições estão os direitos ao trabalho, a saúde, a
segurança material e a educação.
Portanto, o direito ao acesso efetivo a justiça ganhou particular atenção na medida em que as reformas do welfare state
procuraram armar os indivíduos de novos direitos substantivos em sua
qualidade de consumidores, locatários, empregados e, mesmo, cidadãos. De
fato, o direito ao acesso efetivo tem sido progressivamente reconhecido
como sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e
sociais, uma vez que a titularidade de direitos é destituída de
sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva reivindicação.
(CAPPELLETTI, 1988, 11)
3. Obstáculos do Acesso à Justiça:
Em obra clássica, O Acesso à Justiça, Mauro Cappelletti
consagrou os principais obstáculos a serem transpostos para que se
alcançasse o acesso efetivo à Justiça, bem como propôs soluções para
quebrar tais barreiras. Vejamos quais são os obstáculos e,
posteriormente, a forma de transpô-los.
a. Custas Judiciais:
Os procedimentos judiciais necessários à
solução de uma lide, na maioria dos países, possuem custos normalmente
elevados e devem ser necessariamente pagos pelos autores. No Sistema
Americano, o vencido não é obrigado a responder pelos honorários do
advogado da parte vencedora. Nos países que adotam o princípio da
sucumbência, a penalidade é duas vezes maior e pode inibir o litigante
em potencial de ingressar em juízo, já que, se vencido, além de arcar
com os honorários do seu advogado, terá que pagar os honorários da parte
contrária.
Não se pode esquecer também que, ao
autor, cabe o pagamento das custas de distribuição, as provas que
desejar produzir (perícias, diligências, etc.), e ainda o preparo de
recursos, ficando distantes, em virtude de seu preço, das partes
economicamente menos favorecidas.
A duração dos processos é também um
fator que limita o acesso à justiça. Essa delonga eleva
consideravelmente as despesas das partes, pressionando os economicamente
mais fracos a abandonarem suas causas, ou aceitarem acordos por valores
muito inferiores aqueles a que teriam direito.
O processo é um instrumento
indispensável não somente para a efetiva e concreta atuação do direito
de ação, mas também para a remoção das situações que impedem o pleno
desenvolvimento da pessoa humana e a participação de todos os
trabalhadores na organização política, econômica e social do país,
portanto, sua morosidade estrangula os direitos fundamentais do cidadão.
A morosidade do processo está ligada à
estrutura do Poder Judiciário e ao sistema de tutela dos direitos. Para
que o Poder Judiciário tenha um bom funcionamento, necessário se faz,
dentre outros, que o número de processos seja compatível com o número de
juízes que irão apreciá-los, porém, não é isso que ocorre. A imensa
quantidade de processos acumulados por um juiz prejudica não só a
celeridade da prestação da tutela jurisdicional, como também a sua
qualidade.
Muitas demandas não seriam levadas ao
Poder Judiciário se o réu não tivesse do seu lado a lentidão da tutela
jurisdicional, certamente a celeridade evitaria a propositura de muitas
ações. A morosidade gera descrença na justiça, a partir do momento em
que o cidadão toma conhecimento da sua lentidão, das angústias e dos
sofrimentos psicológicos trazidos por ela.
b. Possibilidade das Partes:
As limitações causadas em razão do
estrato social a que pertence o cidadão, apesar da decorrência lógica da
desigualdade econômica, possuem também aspectos sociais, educacionais e
culturais. A grande parte dos cidadãos não conhece e não tem condições
de conhecer os seus direitos. Quanto menor o poder aquisitivo do
cidadão, menor o conhecimento acerca de seus direitos e menor a sua
capacidade de identificar um direito violado e passível de reparação
judicial, além disto, é menos provável que conheça um advogado ou saiba
como encontrar um serviço de assistência judiciária.
Além disto, a complexidade das
sociedades faz com que mesmo as pessoas dotadas de mais recursos tenham
dificuldade para compreender as normas jurídicas. (CAPPELLETTI, 1988,
23) São barreiras pessoais que necessitam ser superadas para garantir o
acesso à justiça.
c. Problemas dos Interesses Difusos:
Para Cappelletti interesses difusos são
interesses coletivos, tais como o direito ao meio ambiente saudável e
equilibrado. Ainda, no entendimento de tal autor os indivíduos até podem
interpor ações visando interesses coletivos, no entanto, a máquina
governamental recusa tais ações e confia no seu poder de proteger os
interesses públicos e de grupos. (CAPPELLETTI, 1988, 27)
No Brasil, o problema referente à tutela
dos interesses difusos e coletivos se deu em razão da invisibilidade
destes para o sistema. O Estado organizou um sistema jurídico único e
abrangente, suficiente para responder todas as questões. Dividindo de
num lado direito individual e de outro direito público. Assim, tudo que
se assemelhasse a coletivo deveria ser entendido como estatal.
Permanecendo os direitos coletivos e difusos invisíveis para o
ordenamento jurídico. (SOUZA FILHO, 1999, 315)
4. Movimento do Acesso à Justiça:
Neste tópico, explicita-se a solução
para o acesso à justiça formulada por Cappelletti que se dá através do
entendimento de três "ondas", qual sejam, a assistência judiciária;
representação jurídica para os interesses difusos e enfoque de acesso à
justiça. . (CAPPELLETTI, 1988, 31)
4.1 Assistência Jurídica para Pobres:
A assistência judiciária é instituto
destinado a favorecer o ingresso em juízo, a pessoas desprovidas de
recursos financeiros suficientes à defesa judicial de direitos e
interesses. É uma forma de possibilitar aos necessitados a obtenção da
tutela jurisdicional afastando destes qualquer impedimento de cunho
econômico.
A assistência judiciária integra o ideal
de que em sentido global é um sistema destinado a minimizar as
dificuldades dos pobres perante o direito e para o exercício de seus
direitos. Na ordem constitucional brasileira a assistência judiciária
integra a ampla garantia da assistência jurídica integral, contida no
capítulo onde se definem direitos e garantias individuais e coletivas, o
artigo 5º, inciso LXXIV destaca que: "o Estado prestará assistência
jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de
recursos". Este artigo, redigida por esse modo na Constituição
Brasileira de 1988, é mais amplo do que os contidos nas Constituições
precedentes porque inclui além da garantia de meios para o acesso à
justiça mediante o exercício do direito ao processo (assistência
judiciária), a oferta de apoio para o correto e efetivo exercício dos
direitos fora da esfera jurisdicional.
A legislação infraconstitucional vigente
sobre a matéria é anterior à Constituição de 1988. A Lei da Assistência
Judiciária fala em assistência judiciária aos necessitados (lei n.
1.060, de 5.2.50) e conceitua como tais aqueles cuja situação econômica
não lhes permita pagar as custas do processo e os honorários de
advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família. Diz ainda que
para obter o benefício basta ao interessado fazer a simples afirmação de
seu estado, na petição com que comparecer perante a Justiça; e
acrescenta que se presume pobre, até prova em contrário, quem afirmar
essa condição. Trata-se de presunção relativa, cabendo à parte contrária
o ônus de desfazê-la.
4.2 Tutela dos Direitos Difusos:
Após, a questão da assistência
judiciária aos pobres entra em pauta também como uma forma de quebrar a
barreira do acesso à justiça, a busca de soluções acerca da
representação da tutela dos direitos difusos e coletivos.
Até o século XIX a regra era tutelar
direitos individuais, beneficiando somente aquele que, comprovando
interesse próprio, acionava o Poder Judiciário. Portanto, os direitos
eram apenas individuais e a tutela se dava pelas regras básicas do
processo civil clássico. (VERRI, 2008, 17)
O processo civil clássico de cunho
individualista e patrimonial não estava preparado para tutelar
interesses metaindividuais e não patrimonializados, tais como os
interesses difusos e coletivos.
A concepção tradicional do processo
civil não deixava margem para a proteção dos interesses difusos e
coletivos, pois o processo era visto como interesse das partes. A partir
do momento que começaram a surgir direitos que já não se enquadravam
mais em público ou privado e que demandavam proteção por parte do
Estado, este se viu obrigado a reformar as noções tradicionais do
processo civil e o papel dos tribunais.
E isso resultou em aberturas para a
evolução no sentido de ampliar a tutela jurisdicional de tais direitos.
Os interesses difusos e coletivos estão previstos na Constituição
Federal de 1988, no artigo 129, inciso III, diante da atuação do
Ministério Público, e também em outros capítulos e artigos desta, bem
como no artigo 81, inciso I do Código de Defesa do Consumidor.
4.3 Enfoque mais amplo do Acesso à Justiça:
Dando continuidade às formulações para a
busca de novas alternativas para a resolução de conflitos,
visualizou-se que os mecanismos anteriores eram insuficientes para o
efetivo acesso à justiça, uma vez que o processo ordinário contencioso
não era a solução mais eficaz, nem no plano de interesses das partes,
nem nos interesses mais gerais da sociedade. (CAPPELLETTI, 1988, 134)
Estas idéias partiram das reformas
precedentes que buscavam a proteção judicial aos hipossuficientes e aos
interesses difusos não representados ou representados de forma ineficaz e
objetivam a mudança dos procedimentos judiciais, de forma ampla,
pretendendo tornar efetivos os direitos buscados. A necessidade de se
possibilitar o acesso à justiça e propiciar a solução de conflitos têm
apontado para a procura por uma justiça conciliadora que pode ser mais
eficaz para a solução dos contenciosos.
Dessa forma, é imprescindível assegurar
ao cidadão que busca solucionar um conflito, uma justiça capaz de
promover uma aproximação das posições, onde a solução seja pelos
litigantes reciprocamente compreendidas, com uma modificação bilateral
ou multilateral dos comportamentos, rompendo dessa forma com um modelo
de justiça que prima pelo conflito.
Assim, torna-se necessário o emprego de
técnicas processuais diferenciadas, onde a simplificação dos
procedimentos é a via alternativa de solução de demandas. Este enfoque
proporciona o envolvimento do Estado como um todo no acesso à justiça,
não só pela via judicial, mas com a criação de políticas públicas de
incentivo a conciliação, arbitragem e mediação, bem como da inserção de
mecanismos administrativos de proteção das relações de consumo e da
possibilidade do acesso, análise e concessão de direitos pela via
administrativa.
Portanto, é necessário o aperfeiçoamento
dos mecanismos processuais, simplificando os procedimentos a fim de
tornar mais acessível à justiça, edificando um sistema apto a atingir os
escopos jurídicos, mas também sociais e políticos da jurisdição.
Assim, diante da ampliação dos
mecanismos do acesso à justiça, e modificações existentes no ordenamento
processual, surgiram vários instrumentos de pleno acesso à justiça e de
participação popular.
5. Conclusões:
Foi efetivamente com a Constituição
Federal de 1988 que o acesso à justiça, tomou contornos transformadores e
conferiu aos jurisdicionados as garantias do pleno acesso, como também
outras garantias, tais como: devido processo legal, juiz natural
contraditório e ampla defesa, dentre outros.
Nesta seara de discussão em que houve a
ampliação dos mecanismos de acesso à justiça, promoveram-se também
diversas modificações no ordenamento processual, através de vários
instrumentos de participação popular, voltados a atender às exigências e
endereçar social e politicamente o sistema processual.
Os Juizados Especiais Cíveis e
Criminais, a Ação Popular, a Ação Civil Pública o Código de Defesa do
Consumidor, o Estatuto da Criança e do Adolescente , etc, são exemplos
das modificações ocorridas no sistema. Com estas e outras medidas,
teremos no Brasil uma Justiça de acesso cada vez mais amplo, com
significativa contribuição para a paz social.
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(Fonte: http://www.ibrajus.org.br/revista/artigo.asp?idArtigo=123)
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