O HABEAS CORPUS NA PERSPECTIVA DA TEORIA GERAL DO PROCESSO
Afrânio Silva Jardim
1) Breve explicação.
O presente estudo será compacto e
direto. Não vamos fazer digressões doutrinárias ou citação
jurisprudencial. Nenhuma consulta se fez. Na verdade, vamos estabelecer
premissas que já pertencem ao “domínio público” na Teoria Geral do
Processo. Colocadas tais premissas, procuraremos extrair conclusões que
nos pareçam mais lógicas.
Assim como na natureza, no direito
também nada se cria, tudo se transforma numa forma dialética. Todos os
autores que lemos sobre o tema são, de alguma forma, determinantes deste
sucinto e despretensioso trabalho.
A toda evidência, vamos operar com as
categorias cunhadas pela Teoria Geral do Processo. Embora combatida por
uma minoritária corrente da doutrina do Direito Processual Penal, a
Teoria Geral do Processo existe e nos fornece um importante instrumental
lógico e racional para explicar o “fenômeno” processual. Não consigo
pensar o Direito sem teorias gerais…
Partimos da premissa de que o Habeas Corpus, em hipótese alguma, tem a natureza de recurso, consoante assente, de há muito, pela doutrina. O Habeas Corpus,
ainda que impugnando uma determinada decisão judicial, instaura uma
outra relação jurídica processual, com sujeitos , causa de pedir e
pedido diversos daquele processo onde foi prolatada a decisão que se
deseja desconstituir.
Todos dizem que o Habeas Corpus tem
a natureza jurídica de uma verdadeira “ação”. Este também é o nosso
entendimento. Cabe explicitar com que conceito de ação vamos trabalhar.
Aqui, para nós, ação é um direito subjetivo público, autônomo e
abstrato, porém conexo a uma relação jurídica de direito material, de
manifestar em juízo um determinada pretensão. Flagrante a influência de
Liebman. Usamos a expressão “pretensão” no sentido de Carnelutti:
vontade que o autor manifesta em juízo de que prevaleça o seu interesse
em detrimento do interesse do réu. O pedido exterioriza a pretensão, a
vontade do autor.
Por derradeiro, há casos em que a ação
tem como escopo a declaração ou desconstituição não de uma relação
jurídica material, mas sim uma relação processual, por exemplo: ação
para declarar nulo um ato processual ou anular um processo, nada
obstante a coisa julgada material (ação rescisória, revisão criminal ou
mesmo habeas corpus).
Ora, se o Habeas Corpus tem a
natureza de direito de ação, precisamos extrair todas as consequências
desta constatação, na perspectiva da Teoria Geral do Processo. É o que
passamos a fazer em seguida.
Cabe ressaltar que não vamos cuidar aqui do chamado Habeas Corpus de
ofício, que não tem a natureza de ação, mas sim de mero provimento ou
medida incidental, vale dizer, decisão jurisdicional prolatada no curso
de um determinado processo, instaurado em face do exercício de outra
ação.
2) Ainda a natureza jurídica do Habeas Corpus.
Dizer que o Habeas Corpus tem a
natureza de “direito de ação” já é dar um grande passo. Entretanto,
precisamos caminhar um pouco mais (aqui rejeitamos as expressões remédio
constitucional, instrumento heróico, etc, pois nada esclarecem e
carecem de técnica mais apurada).
Também não nos satisfaz a assertiva de que o Habeas Corpus é
uma ação constitucional. Não está errado. Entretanto, tal afirmação
parte de uma perspectiva meramente formal e pouco esclarece no plano
processual. Neste sentido mais amplo, toda ação é constitucional,
cabendo ao Direito Processual apenas regular o seu exercício. Uma coisa é
o direito e outra coisa é o exercício do direito. Ademais, a
Constituição da República nomeia expressamente várias outras ações e
isto não dispensa a doutrina de perquirir se elas têm natureza civil,
penal ou trabalhista.
Costuma-se dizer que o Habeas Corpus é
uma ação penal. Nem sempre. Se classificamos a ação tendo em vista o
direito a ser aplicado para “satisfazer” a pretensão do autor, podemos
ter umHabeas Corpus como ação civil ou ação trabalhista. Basta pensar no Habeas Corpus que
tenha como escopo anular um decisão do juiz da vara de família que, em
um processo civil, decorrente de uma ação de alimentos, determina a
prisão do réu por prazo maior do que o previsto no Direito Civil. Este Habeas Corpus não é uma ação penal, evidentemente.
O Habeas Corpus, quando ação
penal (ou não), submete-se à conhecida classificação da teoria da ação,
podendo ser uma ação declaratória, desconstitutiva ou mandamental (nunca
condenatória). Tudo isto depende do pedido formulado pelo autor na sua
petição inicial. Muito do que se disse aqui pode valer para a ação de
mandado de segurança.
3) Consequências jurídicas das premissas estabelecidas.
A lógica nos autoriza a fazer algumas
afirmações questionadoras do que encontramos costumeiramente na
jurisprudência e doutrina pátrias. Vale repetir: se o Habeas Corpus é uma ação, deve ser tratado como uma ação. É até mesmo intuitivo.
3.1. Descabe a expressão, muito usada pelos tribunais, de “não conhecer doHabeas Corpus“.
Alguém já viu alguma decisão não conhecendo de uma ação de despejo ou de uma ação penal pública condenatória?
Esta expressão é própria do juízo de admissibilidade dos recursos. O Habeas Corpus não é um recurso …
Cabe então examinar sim se as chamadas condições para o regular exercício da ação de Habeas Corpus estão ou não presentes.
Em caso positivo, julga-se procedente ou
improcedente o pedido (declaratório, desconstitutivo, mandamental). A
ação não é julgada … ( é um direito que se exerce, regularmente ou não).
Em caso negativo, o processo deve ser extinto sem julgamento do mérito.
Se o Habeas Corpus é uma indevida
reiteração de um outro em tramitação ou já julgado, temos a
litispendência ou coisa julgada. Nestas hipóteses, também devemos ter a
extinção do processo de conhecimento sem julgamento de mérito por falta
de uma condição para o regular exercício do direito de ação. De longa
data, sustentamos que a “originalidade” tem a ver com o duplo e indevido
exercício do mesmo direito de ação (não seria pressuposto negativo …).
Desta forma, a “originalidade” (não litispendência; não coisa julgada) é
uma verdadeira condição genérica para o regular exercício do direito de
ação, por isso, o segundo processo deve ser extinto sem julgamento de
mérito e não anulado.
De qualquer forma, a reiteração da ação de Habeas Corpus não deve levar à decisão atécnica de não conhecimento …
A mesma impropriedade se verifica no uso
das expressões “indefiro o habeas corpus” ou “denego a ordem”.
Indeferir está mais legado a meros requerimentos. Jamais se viu algum
juiz dizer que indefere ou denega uma ação de despejo …
3.2. O exercício da ação de Habeas Corpus determina
a instauração de um processo de conhecimento (processo enquanto
conjunto de atos jurídicos regulados pelo Direito Processual). Entendo,
como dissse alhures, que processo e relação processual são categorias
jurídicas distintas, como o são o criador em relação à criatura. Da
prática de determinado ato surgem, para os sujeitos que atuam no
processo, direitos, deveres, faculdades, ônus, sujeições etc, regulados
pela lei processual.
Ora, se em decorrência do Habeas Corpus instaura-se
um processo de conhecimento, é imprescindível que tenhamos autor e réu,
já que as partes são pressuposto de existência de qualquer processo.
Note-se que no Habeas Corpuspreventivo não temos processo cautelar, pois a tutela é satisfativa. O chamado “impetrante” é o autor da ação de Habeas Corpus,
podendo ter legitimação ordinária ou extraordinária (qualquer pessoa do
povo …). Na segunda hipótese, o autor (impetrante) é substituto
processual do titular do direito de liberdade que se procura tutelar em
juízo ( paciente).
A autoridade coatora é a ré neste processo de conhecimento e deve sustentar a legalidade do seu ato, atacado pela ação de Habeas Corpus.
Pode até este réu ( autoridade) reconhecer a procedência jurídica do
pedido e fazer cessar de imediato o constrangimento ao direito de
liberdade, confome dispõe a lei processual penal.
Destarte, autor é quem pede e réu é
aquele em face de quem se pede a tutela jurisdicional. O Ministério
Público deve atuar neste processo de conhecimento, ora como autor, ora
como custos legis(terceiro) e até mesmo como réu (quando for dito que o ato atacado é de sua autoria). Isto em todos os graus de jurisdição.
3.3. Pelo que acima se disse, não é apropriado “julgar prejudicado” o Habeas Corpus.
O processo de conhecimento só pode ser extinto com ou sem resolução do
mérito, quando faltar uma das condições para o regular exercício do
direito de ação. Se não mais estiver presente o interesse de agir,
julga-se extinto o processo sem o exame de seu mérito. Aliás, mérito é
categoria do processo e não do direito de ação … De igual forma, deve-se
julgar quando for verificado que a ação deHabeas Corpus não é o
instrumento processual adequado à tutela do direito postulado. Nesta
hipótese, faltaria interesse de agir, pois o meio utilizado jamais
poderia dar o “bem da vida” desejado pelo autor.
3.4. Quando julgado o pedido formulado na ação de Habeas Corpus, a
decisão de mérito faz coisa julgada material, surgindo daí as diversas e
intrincadas questões relativas aos seus limites objetivos e subjetivos,
questões estas que aqui nãonos cabe examinar.
3.5. Se o autor da ação de Habeas Corpus (impetrante)
assevera, na sua petição inicial, que determinada autoridade dita
coatora (réu) foi o agente do ato que se deseja atacar e, ao depois,
verifica-se pela prova produzida (documental) que outra foi a pessoa que
praticou o ato, deve-se julgar improcedente o pedido, mesmo que o
verdadeiro autor do ato esteja submetido à competência de outro órgão
jurisdicional. As condições da ação devem ser examinadas tendo em vista o
que, em tese, alega-se na petição inicial e não tendo em vista o que
restou provado (mérito). Descabe aqui declinar da competência, como é de
costume fazer.
3.6. “Trancar inquérito”, “trancar processo”, “trancar ação” ???
Embora estas questões estejam
relacionadas não com o processo de conhecimento instaurado em
decorrência do exercício do direito de ação de Habeas Corpus, mas
sim com os efeitos da sua decisão de mérito, cabe aqui fazer um reparo a
estas expressões que não encontram respaldo na técnica processual,
malgrado consagradas pelo costume. Não se trata de mero preciosismo.
Cuida-se de usar os termos processuais adequados a fim de que se saiba
com clareza o que realmente foi decidido e que efeitos tal decisão
produz. Em nenhum dispositivo de nosso código processual encontramos o
instituto do trancamento do inquérito, do trancamento do processo ou da
ação … (ação e processo são categoria idênticas …????).
Entendemos que a decisão em Habeas Corpus que
“tranca” um inquérito produz o mesmo efeito de uma decisão de
arquivamento de inquérito policial ou peças de informação. Surgindo
notícia de prova nova, as investigações policiais devem ser retomadas.
Surgindo a prova nova, o direito de ação deve ser exercido pelo
Ministério Público (princípio da obrigatoriedade da ação penal
condenatória pública). Já escrevemos sobre estes temas.
A decisão de arquivamento jamais pode
fazer coisa julgada material, pois não há ação, jurisdição ou processo.
Trata-se de uma decisão judicial e não jurisdicional, prolatada em um
procedimento administrativo de natureza inquisitória, presidido por um
delegado de polícia.
Na hipótese de aplicação do disposto no
art.28 do Cod.Proc.Penal, a decisão verdadeiramente é do
Procurador-Geral (como falar-se de coisa julgada? …).
Na verdade, ao decidir pelo arquivamento
do inquérito policial (procedimento administrativo inquisitorial), o
juiz não deve aplicar o Direito Material ao caso concreto, dizendo que o
indiciado agiu em legítima defesa ou justificado por alguma outra
excludente de ilicitude ou culpabilidade. Deve dizer sim que não há
prova mínima da ilicitude ou reprobabilidade da conduta investigada
(justa causa). Também sobre isto já escrevemos.
Entretanto, uma decisão de mérito, provocada por uma ação de Habeas Corpus,
transitada em julgado, pode impedir a instauração de novo inquérito ou
mesmo impedir o prosseguimento das investigações em andamento. Isto se
dá quando o órgão jurisdicional decidir sobre o “direito de punir” do
Estado. Por exemplo: via ação de Habeas Corpus, o juiz ou tribunal podem declarar extinto oius puniendi estatal,
tendo em vista o reconhecimento da prescrição. Neste caso, não caberá
mais a persecução penal como efeito desta decisão jurisdicional. Aqui
houve ação (habeas corpus), jurisdição e processo.
Tudo isto vale, mutatis mutandis,
para a decisão de “trancamento do processo ou da ação” (sic). Os
efeitos desta decisão serão: a) extinção do processo sem resolução do
mérito, por falta de uma condição da ação); b) anulação do processo ou
de alguns de seus atos; c) declaração de inexistir ou ter desaparecido o
“direito de punir” do Estado, hipótese muito excepcional.
4) CONCLUSÃO:
Não cabe aqui repetir o que sustentamos
no desenvolver deste resumido estudo, até porque ele já tem um formato
meio tópico, sendo que cada item já é por si uma ou mais conclusões. O
que fica claro para nós é que a dogmática processual é indispensável
para darmos racionalidade e solução lógica aos vários problemas que
surgem no processo, sendo de rigor a precisão terminológica. Um dos
escopos da teoria é “iluminar” o atuar prático, explicando-o e lhe dando
funcionalidade. Vale dizer, a técnica jurídica é indispensável a todos
aqueles que pensam ou aplicam o Direito.
Maio de 2014
AFRANIO SILVA JARDIM
Professor Associado de Direito
Processual Penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre e
Livre-docente. Procurador de Justiça (aposentado) no E.R.J.
Fonte: http://eugeniopacelli.com.br/artigos/o-habeas-corpus-na-perspectiva-da-teoria-geral-do-processo/
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