No mês passado, foi publicada pela editora Revista dos Tribunais, a segunda edição do livro Introdução à Teoria e à Filosofia do Direito
que escrevi em parceria com Georges Abboud e Henrique Garbellini
Carnio. A obra conta, ainda, com o prefácio de Nelson Nery Júnior e o
posfácio de Lenio Streck.
O livro foi
pensado a partir de um diagnóstico claro com relação ao estado das
disciplinas de formação nos quadros do curso de Direito. Em especial, a
Filosofia e a Teoria do Direito. Há um certo descompasso entre aquilo
que é objeto de debate na contemporaneidade e aquilo que compõe as
ementas institucionalizadas nos diversos cursos de Direito deste país.
Há fatos que servem de amostra para isso. A perplexidade expressada em
alguns comentários à coluna
de Lenio Streck dessa última quinta-feira (19/6) serve como um bom
exemplo. Ora, apesar de tudo o que se discute e se discutiu sobre o
problema da decisão judicial desde o início do século XX, somos ainda
bombardeados por acepções que separaram ser de dever ser, prescrição de
descrição etc., em afirmações do tipo: “isso — a decisão variar de
acordo com a alimentação ou a problemas familiares — é assim mesmo”. Ou
ainda, “o juiz não é uma máquina”; “o juiz é gente como a gente”...
Minha perplexidade é: porque precisamos de pesquisas para dizer algo
que, pelo menos desde a discussão em torno do problema das lacunas, do
realismo jurídico e do movimento do direito livre, já sabemos no âmbito
da Teoria do Direito?
A resposta começa, certamente, por
tentativas de reconstruir o discurso em torno da Teoria do Direito e
pontuar aquilo que são as principais discussões que nos envolvem em
nossos dias atuais.
É a isso que a obra citada se propõem.
Trata-se, na verdade, de um livro preparado com o objetivo de introduzir
aos problemas fundamentais do conhecimento jurídico os estudantes e
pesquisadores do Direito. O livro pretende-se como uma espécie de “guia
de leitura” que objetiva posicionar corretamente tanto o calouro que
ensaia os primeiros passos no universo da juridicidade, quanto o
profissional que se lança nos tortuosos caminhos da pós-graduação, no
interior do discurso teórico-filosófico articulado contemporaneamente no
campo do direito.
Cuida-se de uma introdução ao Direito que não
foi pensada como um inventário de matérias acumuladas historicamente
pelo conhecimento jurídico em torno dos temas que classicamente compõem
os interesses da Teoria Geral do Direito e da filosofia jurídica, como
justiça, hermenêutica, metodologia, teoria da norma, fontes, moral e
interpretação.
Não optamos, portanto, pela facilidade oriunda de
uma exposição linear e cronologicamente simplificada de tais temas, pois
entendemos que uma tal abordagem não se mostra apta a depreender toda a
complexidade do fenômeno jurídico. Mais importante do que ter contato
perfunctório sobre os mais diversos aspectos do pensamento jurídico é
conseguir colocar-se em condições de diálogo com este pensamento.
Nessa medida, Martin Heidegger[1] afirmava que: “introduzir à filosofia significa pôr o filosofar em curso”,
isto é, o fundamental para se aprender a filosofia é filosofar, daí sua
metáfora de que não seria possível aprender a nadar por meio de manual
de natação, mas tão somente nadando.[2]
De modo similar, nosso intuito é justamente estabelecer a aproximação
do pensamento jurídico que possibilite aos leitores um manejo adequado
das principais polêmicas que povoam a contemporaneidade jurídica.
Ou
seja, não se pode aprender Direito simplesmente observando-o do lado de
fora. Mais precisamente, não se compreende o Direito a partir de mero
receituário com diversos conceitos abstratos e superficiais. Conscientes
de que no conhecimento jurídico não existem posicionamentos teóricos
unânimes e incontroversos, optamos por encará-lo a partir de sua
complexidade e de sua predisposição para a polêmica. Tal qual já afirmou
Dworkin, a controvérsia é o coração do argumento jurídico. Daí que a
melhor forma de se trabalhar seus conceitos é a partir dos problemas que
a própria operacionalidade do Direito propicia.
Isso significa
projetar o horizonte adequado para abrir os contextos significativos em
que os problemas do conceito e definição do direito; da fundamentação e
da validade jurídica e de como são decididas as questões jurídicas. Tais
pontos não podem ser pensados fora da dimensão filosófica que os abarca
e que apresenta como questão principal a relação entre saber teórico e
saber prático e suas consequências para o conhecimento jurídico.
Assim, optamos por estruturar a obra a partir do eixo fundamental de três perguntas: O que é o Direito? O que fundamenta o Direito? Como são decididas as questões jurídicas? Cada uma dessas perguntas é respondida no desenrolar de dez capítulos.
De todo modo, fato é que, para muitos juristas, o jurídico está para o direito assim como a “cavalice”[3]
está para o cavalo. De nosso ponto de vista, contudo, o Direito é
complexo, dinâmico, histórico e conflituoso, o que impede a formulação
de qualquer estratégia essencialista para definição de um único conceito
que defina toda a gama de possibilidades que se projetam a partir do
jurídico. Sendo assim, uma, ainda que simples e breve, introdução ao
Direito, para cumprir seu desiderato, de forma teoricamente honesta, não
pode ser esquematizada, simplificada, condensada, entabulada,
plastificada etc.[4]
Aliás,
como já afirmado, vivemos hoje um momento de apreensão com relação às
assim chamadas disciplinas de formação do curso de Direito. Um breve
euforia inicial em face do reconhecimento oficial da dignidade de tais
disciplinas em concursos para carreiras jurídicas — cujo marco foi a
Resolução 75/2009 do CNJ — foi substituído por um sentimento de receio
na medida em que o modo como os examinadores de tais concursos lidam com
tais conteúdos é altamente questionável.
Os famosos cursinhos
preparatórios — que se alastraram no universo jurídico como uma erva
daninha, dando a impressão de que o encerramento da faculdade de direito
seria uma espécie de segundo turno do ensino médio — passaram a
incorporar em sua grade de matérias as disciplinas humanísticas.
Evidentemente que o rescaldo desse fenômeno foi a tentativa de manipular
tais conteúdos a partir dos esquemas, quadro mentais, resumos e outras
tantas metodologias despistadoras que já eram empregadas para a análise
das disciplinas técnicas ou dogmáticas.
Todavia, as disciplinas de
formação estão inseridas no projeto daquela que, talvez, seja a mais
imponente das utopias: o humanismo e seu ideal de formação do ser
humano. Será que todo esse nobre propósito cabe nas caixas conceituais
que, tradicionalmente, nos foram impostas para lidar com o conhecimento
jurídico? Por certo que a resposta é negativa.
Com efeito, como nos lembra Peter Sloterdijk[5], em seu polêmico Regras para o Parque Humano,
o humanismo está ligado à intenção de se formar uma grande comunidade
de leitores; de seres humanos que deixam o estado da pura barbárie e se
civilizam por meio da leitura de textos que transmitem, através de elos
inscritos no passado, a tradição cultural que nos conforma. O autor nos
lembra que, desde os dias de Cícero, aquilo que se chama humanitas
faz parte, no sentido mais amplo e no mais estrito, das consequências
da alfabetização e se aperfeiçoa com o exercício da leitura. Ou seja, da
possibilidade que se abre a partir da comunicação realizada à distância
pela escrita.
O sempre aberto diálogo entre leitor e escritor é
um convite à toda dimensão de complexidade que a vida engloba. Através
desse diálogo somos chamados a refletir sobre angustias, frustrações,
sucessos e problemas morais. A ideia é que a leitura nos torna mais
humanos e nos distancia de nossa herança animal.
Não é a toa que grandes distopias como Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley[6]; 1984, de Georg Orwell[7]; e Fahrenheit 451, de Ray Badbury[8]
criavam um tipo de sociedade em que os livros — e consequentemente a
escrita e a leitura — estavam banidos das atividades sociais e os seus
indivíduos, justamente por isso, acabavam moldados por um coletivo
acrítico e, portanto, aculturado. Não deixa de ser igualmente
sintomático nesse sentido que, no livro de Huxley, por exemplo, é o
Selvagem — alguém que está situado fora da ordem pré-estabelecida — quem
descobre Shakespeare, lê suas obras e, a partir de então, começa a
questionar as estruturas do establishment. Há um diálogo,
extremamente marcante nesse sentido, no qual Mustafá Mond — o grande
Dirigente daquela sociedade distópica de Huxley — afirma que a leitura
de livros como os de Shakespeare era uma atividade proibida. O Selvagem,
então, questiona o todo poderoso a respeito da proibição, ao que
responde o dirigente: “porque é velho; — eis a principal razão. Aqui não
temos aplicações para coisas velhas”.
As disciplinas, chamadas de
formação humanística, são exatamente recheadas de “coisas velhas”. São
elas que nos ligam ao passado. E é esse diálogo literário com o passado
que nos constitui culturalmente.
Na verdade, não é apenas o ódio
ao “velho” e o culto acrítico ao “novo” que marca o estilo dessas
distopias. No livro de Ray Badbury, por exemplo, logo no início da
narrativa, o Bombeiro Montag — lembrando que, na sociedade criada por
Badbury, os bombeiros não combatiam incêndios. As casas eram “à prova de
fogo”. Sua função era queimar os livros que, eventualmente, ainda
existissem nas casas das pessoas — faz a seguinte consideração: “Os
livros são o caminho da melancolia”. Eles seriam, enfim, um convite à
transcendência, ao desvario, à errância, ao desvio em relação ao destino
bovino de uma humanidade conformada. Nessas sociedades distópicas, a
ausência da leitura homogeiniza a todos.
Por certo que a
simplificação, os quadro sinóticos, os quadros mentais, as rimas, as
aulas travestidas, não queimam livros. Pelo menos não na sua
literalidade. Todavia, produzem um certo tipo de atividade de pastoreio,
de arrebanhamento que, paradoxalmente, é contraditória com qualquer
princípio humanístico que guarnece a estrutura dessas disciplinas de
formação.
Enfim, essa nossa introdução passa bem longe dessas
pretensões. Ela trata o leitor com o respeito que ele merece e o convida
para participar de um diálogo que nós não iniciamos e também não
encerraremos. Todos somos apenas parte dessa comunidade intergeracional
de leitores.
[1] Martin Heidegger. Introdução à filosofia, São Paulo: Martins Fontes, 2008.
[2] Martin Heidegger. Los problemas fundamentales de la fenomenologia. Madrid: Editorial Trotta, 2000.
[3] Cavalice é a essência de todo cavalo. James Joyce. Ulisses. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007. p. 227.
[4] Sobre a “estandardização” do ensino jurídico, cf. Lenio Luiz Streck. O que é isto – decido conforme minha consciência? 2. ed. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2010, passim.
[5] Cf. Peter Sloterdijk. Regras Para o Parque Humano. 3. ed. São Paulo: Estação Liberdade, 2000.
[6] Cf. Aldous Huxley. Admirável Mundo Novo. Rio de Janeiro: Globo, 2009.
[7] Cf. George Orwell. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
[8] Cf. Ray Badbury. Fahrenheit 451. Rio de Janeiro: Globo, 2009.
Rafael Tomaz de Oliveira é
advogado, mestre e doutor em Direito Público pela Unisinos e professor
do programa de pós-graduação em Direito da Universidade de Ribeirão
Preto (Unaerp).
Revista Consultor Jurídico, 21 de junho de 2014, 08:00h
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