No
Processo Penal constitucionalizado a carga probatória é da acusação. Ao
acusado não cabe provar qualquer fato — mesmo quando objeta com um
álibi, ainda que não comprovado o álibi, tal situação não repercute no
seu status inicial de inocente[1].
Compete ao autor da ação penal a obrigação de produzir todas as provas
necessárias à formação da convicção do julgador, no círculo
hermenêutico prova/fato (cuja aceitação aqui é meramente
circunstancial). Como se estabelece uma tensão entre a liberdade
(presunção de inocência) e a prova suficiente para condenação, pode-se
invocar a teoria da “perda de uma chance”, própria do Direito Civil,
justamente para se analisar os modos de absolvição em face da
possibilidade e não produção de provas pelo Estado. Isso porque num
processo democrático não pode o acusador se dar por satisfeito na
produção da prova do e pelo Estado, eximindo-se das
demais possíveis, até porque não se trata mais de verdade real, mas de
verdade produzida no jogo processual[2].
Claro que a teoria não pode ser trazida como “espelhinho” teórico,
demandando a respectiva aproximação adequada, a partir da noção de
processo pena como jogo. Rafael Peteffi da Silva[3] discorre sobre a Teoria da Perda de Uma Chance:
“Na lição de François Chabas, existem algumas características principais: a vítima deve estar em um processo aleatório, que foi interrompido pelo ato do agente e que ao final poderia lhe representar uma vantagem. Assim, pode-se afirmar que há uma ‘aposta’ perdida (essa aposta é uma possibilidade de ganho, é a vantagem que a vítima esperava auferir - como a procedência da demanda judicial e a obtenção do primeiro prêmio da corrida de cavalos - que normalmente pode ser enquadrada dentro da categoria de lucros cessantes) e uma total falta de prova do vínculo causal entre a perda dessa vantagem esperada e o ato danoso, pois essa aposta é aleatória por natureza.”
Não se pode negar
que o acusado poderia ser condenado com a prova já existente nos autos,
mas também não é menos verdade que a produção das demais provas
possíveis (periciais, depoimentos, filmagens, etc.), sempre carga
probatória da acusação, poderia enfraquecer ou mesmo levar à absolvição.
No campo do processo penal, pois, a ideia que preside é a da acumulação
de elementos de convicção por parte da acusação. Em uma frase: toda prova é necessária e nada é dispensável.
O acusado perdeu a chance, com a não produção (desistência, não
requerimento, inviabilidade, ausência de produção no momento do fato
etc.,) de que sua expectativa de absolvição fosse destruída de boa-fé.
Rafael Peteffi da Silva anota que as chances devem ser sérias e reais:
“A observação da seriedade e da realidade das chances perdidas é o critério mais utilizado pelos tribunais para separar as chances potenciais e prováveis e, portanto, indenizáveis, dos danos puramente eventuais e hipotéticos, cuja reparação deve ser rechaçada. Inicialmente vale ressaltar que as chances devem ser apreciadas objetivamente, diferenciando-se das simples esperanças subjetivas (...). A verificação objetiva das chances sérias e reais é muito mais uma questão de grau do que de natureza. Assim, somente a análise dos casos concretos possibilitará ao magistrado a verificação da real seriedade das chances. No entanto, podem-se traçar algumas características gerais, que auxiliam o aplicador do direito em um discernimento mais seguro e menos casuístico sobre a eventualidade do dano.”
E continua:
“A chamada ‘Teoria da Perda da Chance’, de inspiração francesa e citada em matéria de responsabilidade civil, aplica-se aos casos em que o dano seja real, atual e certo, dentro de um juízo de probabilidade, e não de mera possibilidade, porquanto o dano potencial ou incerto, no âmbito da responsabilidade civil, em regra, não é indenizável; (...). Como foi visto até o presente momento, a teoria da perda de uma chance é utilizada devido à impossibilidade de se saber se a ‘aposta’, isto é, o processo aleatório, apresentaria um resultado positivo.”
Feita essa aproximação, nos
limites do artigo, cabe dizer que é cada vez mais comum, especialmente
pela chancela do Poder Judiciário, que as condenações ocorram
exclusivamente com base na palavra dos policiais. E isso significa, em
síntese, que não se possui mais nada a se fazer no processo em
contraditório. Confirma-se o que se disse no flagrante ou no inquérito
policial. E isso é pouco democrático porque havia chances de se produzir
provas para além dos agentes estatais. Nos casos de tráfico a questão
beira ao paroxismo. De regra, as provas da condenação advêm somente dos
depoimentos dos policiais e não encontram guarida no restante do acervo
probatório. Muitas vezes os policiais afirmam que a abordagem se deu
logo após observarem a venda para um usuário de droga, mas nenhum
possível comprador de droga é identificado ou presta declaração, nem é
conduzido à autoridade policial. Consequentemente, dito usuário jamais
será ouvido em juízo. Nem sequer, quando a venda ocorre em veículos, as
placas dos tais compradores são anotadas. Assim, os agentes de segurança
pública deixam de colher prova potencialmente isenta, não por ausência
de possibilidade de produção da prova mais adequada, mas sim pela cômoda
adoção da lei do menor esforço e pela confiança na atribuição de alta
confiabilidade aos seus próprios relatos.
Estamos em 2014, tempos
em que a tecnologia facilita as filmagens — aliás, os policiais depois
da jornadas de protestos de 2013 receberam câmeras para serem colocadas
nas fardas — e não se justifica a manutenção do modelo medieval de
produção probatória testemunhal. Há possibilidade de tal proceder e não
se faz. Logo, enfraquecida resta a prova. E é o que se faz quando se
confere alto valor probatório aos testemunhos de policiais, dando-lhes
capacidade de, per se, embasarem uma condenação: o próprio
agente público finda por "se transformar na prova" quando, na realidade,
sua função precípua é a de angariar elementos probatórios.
São
possíveis a filmagem de toda a ação; investigações anteriores; condução
dos usuários por porte etc. Mas nada disso é produzido. A acusação se
restringe a produzir (repetir) em juízo os depoimentos dos policiais.
Nesse contexto, ainda que os depoimentos dos policiais não sejam
inválidos, cabe indagar se o Estado polícia, acusador e juiz, não deve
exigir a produção de todas as provas possíveis, sob pena de flexionar a
presunção de inocência pressuposta em nome da facilidade da condenação,
fazendo com que o acusado perca a chance de questionar a consistência e
coerência de todas as provas.
Não se trata de uma quimera. Mas de
tipo penal com pena de cinco anos. A perda da chance de que todas as
provas contra si sejam produzidas implica numa perda, sem
possibilidade de produção pela parte contrária, lembrando-se, ainda, que
o acusado nada deve provar. Dito de outra forma: o Estado não pode
perder a chance de produzir provas contra o acusado em nome da
eficiência. Todas as provas possíveis se constituem como preceitos do
devido processo substancial, já que a vida e a liberdade do sujeito
estão em jogo. Deve, portanto, exigir-se a justificativa plausível para
que tenha se perdido a chance de se produzir prova material, além da
testemunhal, pelos agentes estatais.[4].
Não basta ausência de condições tecnológicas, pois essas são possíveis e
não realizadas pelo próprio Estado. Há a perda de uma chance para
defesa pela ausência de prova possível e factível da acusação, a ser
apurada em cada caso. Por sua omissão o Estado ceifa a possibilidade de
comprovação mais substancial e impede a perfeita configuração da ação
típica.
Não é coerente, por exemplo, aceitar-se como suficiente o
relato prestado por policiais no sentido de que viram o acusado
praticando o crime de tráfico de droga quando, por exemplo, havia
possibilidade de os mesmos agentes, no estrito cumprimento do dever
legal, colherem informações de terceiros para justificar a prisão em
flagrante. Proceder assim é atentar contra a qualidade da prova e
deslegitimar eventual decisão condenatória, porque obviamente não foram
esgotados — e por culpa do próprio Estado — as formas de averiguação do
fato imputado. Por isso é que se afirma: a destruição do estado
constitucional de inocência do acusado não pode se dar unicamente pela
prova produzida contra ele pelo Estado na forma de seus
agentes, dado que dificilmente refutável, a se considerar a realidade
dos casos, nos quais não raramente a única defesa do acusado será sua
própria palavra – a qual se dá pouca confiabilidade na jurisprudência –
em face da dos policiais. Dever-se-á, assim, sempre se exigir uma
"comprovação externa", a ser buscada pelos próprios agentes públicos
quando do cumprimento das diligências, claro, dentro de uma
razoabilidade, já que nem todas as condutas possibilitam a ampla
produção probatória.[5]
Ademais,
reforça-se que não é papel do acusado provar sua inocência, já que a
carga probatória é do Ministério Público, a quem incumbe demonstrar, de
maneira inequívoca, que a droga apreendida era de fato destinada à
comercialização e, mais do que isso, que o acusado possuía relação com a
droga apreendida. O dano decorrente da condenação, mesmo ausente a
produção de prova possível, implica no reconhecimento da modulação,
invertida, da Teoria da Perda de uma Chance, no Processo Penal. Não se
trata de dano hipotético ou eventual, mas sério e real da liberdade de
alguém. A perda da chance probatória por parte do Estado acusação gera o
nexo de causalidade com a fragilidade da prova que poderia ser
produzida e, com isso, diante da omissão estatal, pode-se aquilatar, no
caso concreto, os efeitos dessa ausência. Dado que a única presunção
constitucionalmente reconhecida é o da presunção de inocência, não
produzida prova capaz de corroborar a palavra isolada dos policiais, em
muitos casos, a condenação será abusiva, ainda mais quando disponíveis,
em pleno 2014, meios tecnológicos hábeis (utilizados amplamente por
forças policiais em diversos países), ausente no Brasil. Não se está
duvidando da palavra dos policiais. O que se reconhece é que a
condenação de um sujeito, em uma democracia, exige a produção dos meios
probatórios disponíveis. Sem eles, havendo qualquer dúvida, a absolvição
é o único caminho.
Sabe-se que a condenação exige certeza e,
havendo dúvida acerca da autoria do delito, bem assim a perda da chance
de produção de prova por parte do Estado, plenamente factível, nos dias
atuais em face dos avanços tecnológicos, a absolvição é a medida que se
impõe. A Teoria da Perda de uma Chance, assim, pode ser invocada no
Processo Penal para o fim de justificar teoricamente a absolvição pela
falta de provas possíveis, não apuradas, não produzidas, mas
factíveis, prevalecendo a presunção de inocência.
[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.
[2] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2014.
[3] PETEFFI SILVA, Rafael. Responsabilidade Civil pela Perda de uma Chance. São Paulo: Atlas, 2013.
[4]
MADEIRA, Ronaldo Janus. Da Prova e do Processo Penal. Rio de Janeiro:
Lumen Juris,, 2003. p. 98-99: “Outra questão polêmica é a da
credibilidade ou não do depoimento policial. Lógico que, em função de
serem todas as provas relativas, não havendo hierarquia nem valor
apriorístico entre elas, a função de policial, em princípio, não
invalida nem diminui seu valor, mormente se harmônico com o conjunto de
elementos produzidos no processo. Entretanto, o depoimento de policiais,
principalmente nas ações penais nos crimes de entorpecentes, quando
exclusivos, e podendo no momento da prisão em flagrante obter a
declaração de pessoas estranhas à corporação, e divorciados de outros
elementos probatórios, não devem servir para fundamentar um édito
condenatório. A função da polícia não é a de fazer prova, mas de obter
provas. Ora, uma infração penal que na sua apuração resultou confirmada
apenas por depoimentos policiais, confusos e contraditórios e, quando da
fase de instrução, nenhum elemento novo foi acrescido, mostra-se sem a
credibilidade necessária para que o julgador julgue procedente a
pretensão punitiva. A autoridade policial, nos inquéritos, tendo
oportunidade de obtenção de outras provas, outros testemunhos, estranhos
ao quadro policial e não o fazendo, a prova produzida deve ser aceita
com reservas, negando-se o valor a essa prova assentada, somente, em
depoimentos policiais. Até porque, quando os policiais que efetuaram o
flagrante, podendo, não trazem aos autos pessoas estranhas ao processo
para que se outorgue validade a seus atos, normalmente, o ato de prisão
ocorreu com violências, agressões e outros meios ilícitos que maculam
como duvidosas e imprestáveis as provas produzidas.”.
[5]
NUCCI, Guilherme Souza. Leis penais e processuais penais comentadas.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010: “Para a comprovação da prática
do crime de tráfico ilícito de entorpecentes (e de outros tipos penais
previstos nesta Lei), exigia-se, no passado, prova testemunhal
considerada isenta, vale dizer, distinta dos quadros da polícia, pois
esta, através dos seus agentes, seria a responsável pela prisão ou
investigação, logo, teria interesse em mantê-la, justificando seus atos e
pretendendo a condenação do réu. Não mais vige esse pensamento, como
majoritário, nos tribunais brasileiros. Preceitua o art. 202 do CPP que
“toda pessoa poderá ser testemunha”, logo, é indiscutível que os
policiais, sejam eles os autores da prisão do réu ou não, podem
testemunhar, sob o compromisso de dizer a verdade e sujeitos às penas do
crime de falso testemunho. Ressaltamos, entretanto, que é preciso
cautela, em determinadas peculiares situações, para a aceitação
incondicional desses depoimentos. Parece-nos cauteloso que o magistrado,
visualizando, em processos de apuração de crime de tráfico ilícito de
entorpecentes, um rol de testemunhas de acusação formado somente por
policiais, indague dos mesmos a razão pela qual não se obteve nenhuma
outra pessoa, como testemunha, estranha aos quadros da polícia. Essa
verificação é essencial, pois uma apreensão de drogas feita à vista de
inúmeras pessoas, em local público, por exemplo, pode perfeitamente
contar como testemunho de pessoas que não sejam policiais.”
Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC.
Revista Consultor Jurídico, 20 de junho de 2014, 15:50h
Fonte: www.conjur.com.br/2014-jun-20/teoria-perda-chance-probatoria-aplicada-processo-penal
Fonte: www.conjur.com.br/2014-jun-20/teoria-perda-chance-probatoria-aplicada-processo-penal
Nenhum comentário:
Postar um comentário